Na guerra cultural que tomou conta do país nos últimos anos, uma pessoa que não vive nem quer viver com evangélicos acha razoável descrever esse grupo como “zumbis bolsonaristas”. Faz isso sem perceber quantas igrejas hoje estão divididas por causa da política.

O uso do termo “evangélicos” não ajuda a combater estereótipos sobre esse grupo porque dá uma ideia de homogeneidade que não existe. Mas dizer que um evangélico é bolsonarista por ser evangélico é como dizer que um muçulmano, por ser muçulmano, é um terrorista. É uma generalização desinformada e preconceituosa.

Numericamente, a preferência entre Lula e Bolsonaro foi dividido meio a meio no início do ano. A explicação de que muitos evangélicos desaprovam o governo Bolsonaro levou lideranças evangélicas bolsonaristas a fazer uma cruzada nas redes sociais para questionar a idoneidade dos institutos responsáveis pelas pesquisas e repetir o lema de que “Cristãos não votam na esquerda”.

Mas o clima de tensão – e o desgaste causado pela política – que tomou o espaço da religião nas igrejas é mais intenso do que a percepção geral de “insatisfação” captada pelas pesquisas. Esses dados numéricos não refletem, por exemplo, o clima de policiamento ideológico nesses espaços de fé, que constrange ou tenta constranger evangélicos que rejeitam Bolsonaro a mudar de posição ou se calar.

E o evangélico médio, que provavelmente sabe mais sobre a Bíblia do que a maioria dos leitores desta coluna, percebe quão pragmático é o interesse do presidente pelo cristianismo. É católico apesar de ter sido “batizado nas águas” três vezes, tem uma atitude truculenta em desacordo com a do evangélico, conhece a Bíblia superficialmente e defende que a solução para o problema da vi0lência* no país é armar a sociedade.

A reaproximação entre Bolsonaro e algumas lideranças evangélicas, principalmente do interior Pentecostal, também cria um problema de imagem pública para os evangélicos. os vários escândalos envolvendo líderes religiosos — como o aparelhamento do MEC para distribuição de verbas públicas pelos pastores — confirmam a visão negativa que a sociedade tem dos evangélicos, de que são moralistas hipócritas, têm projetos de poder pessoal ou querem usar o Estado para cristianizar a sociedade.

Colunas e Blogs

Receba em seu e-mail uma seleção de colunas e blogs da Folha; exclusivo para assinantes.

As igrejas evangélicas estão internamente ameaçadas de ruptura, a partir desse envolvimento com a política, pelo ambiente hostil que se estabeleceu entre os membros e, publicamente, pela má fama que os cristãos evangélicos estão herdando pelo apoio de alguns líderes a um político que não é evangélico e representa, em muitos aspectos, a antítese do cristianismo.

Você, leitor, pode verificar essa tensão perguntando aos evangélicos conhecidos como a antipatia a Bolsonaro vem crescendo entre eles devido à percepção de que o presidente banaliza o cristianismo. Igrejas que, antes de Bolsonaro, eram espaços de acolhimento, cultivo de amizades e busca de pacificação interior, tornaram-se palco de disputas e convivência estressante.

Esse é o preço de uma campanha contínua e insistente, feita para convencer esse público de que Bolsonaro não é o pior, mas o menos pior entre os candidatos. Faz isso exacerbando a importância das diretrizes morais para demonstrar que os cristãos não podem votar na esquerda. E, se esse argumento não convence milhares de evangélicos, predominantemente pobres, atenua ou disfarça a insatisfação causada pela fome, que voltou ao cotidiano dos brasileiros na base da pirâmide social.

Mesmo a ênfase artificial na importância das diretrizes morais impressiona os não-evangélicos mais do que os próprios fiéis. Serve como cortina de fumaça para esconder as muitas diferenças entre o que os pastores pregam e o que os evangélicos vivem no campo da moral.

A antropóloga Lorena Mochel, da Unicampescreveu recentemente em Observatório Evangélico sobre como os discursos do ex-ministro Damares Alvesdefendendo a abstinência sexual para evitar a gravidez, se chocam com o que ela, Lorena, encontrou em sua pesquisa: “Casais evangélicos pentecostais falam sobre sexualidade em seu cotidiano [e] … sobre prazer e prevenção”.

Como dispositivo de comunicação, o que funciona especialmente nos círculos pentecostais são as teorias da conspiração que pegam carona na ideia, presente no pentecostalismo, de que os cristãos são perseguidos pelo sistema.

Pastor Alexandre Gonçalvesque é pentecostal e lidera o Movimento Trabalhista Cristão do PDT, contou em seu blog como a mesma Damares ficou conhecida dizendo que a empresa Disney queria “implantar a homossexualidade” e que existe uma rede de pedofilia que domina o mundo.

Os truques disponíveis para manter a pressão sobre os evangélicos – as táticas e os temas – já estão no quadro. Isso levanta a questão: a campanha do presidente continuará constrangendo os evangélicos a silenciar sua inquietação? Ou a longa exposição desses dispositivos produzirá anticorpos e dessensibilizará o público às teorias da conspiração ligadas às diretrizes morais? E até que ponto a irritação causada pela excessiva politização do ambiente religioso começará, ainda que silenciosamente, a agir contra o presidente?

Fonte: Folha de São Paulo

By admin

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *